Por Ronilso Pacheco na
Novos Diálogos.
Vandalismos são uma afronta ao estado democrático de Direito.
Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro
O direito não é a Justiça.
Jacques Derrida, filósofo francês
Não obstante as duas epígrafes acima, eu inicio este texto com uma
citação do performático filósofo esloveno Slavoj Žižek, contida nas
primeiras páginas de seu livro A Marioneta e o Anão:
No quadro desta nova ordem mundial, há dois papéis
possíveis para ela [a religião, aqui substituída pela Igreja e sua
atuação]: Terapêutico ou Crítico – ou ajuda os indivíduos a funcionarem
cada vez melhor na ordem existente, ou procura afirmar-se como instância
crítica e dizer o que está errado nessa ordem como tal, ou seja,
enquanto espaço aberto às vozes contestatárias.
Um “desejo de paz” invade as igrejas. Instituições que “ensaiaram”
uma presença nas manifestações, as igrejas passaram a “fazer a
diferença” pedindo manifestações pacíficas, assustadas com o grau de
radicalidade em alguns atos. E em diversas igrejas evangélicas que se
propuseram a discutir o efeito manifestações (pouquíssimas), a discussão
sobre a legitimidade e relevância das manifestações perdeu espaço para a
legitimidade e a possibilidade de haver algum “componente cristão” na
“violência” e no “vandalismo” aplicado aos patrimônios públicos e
privados das cidades por alguns.
Mais do que nunca, uma dificuldade são as definições. Concordo com
Gastón Bachelard, que dizia, com sua sabedoria profética, que conceitos são como gavetas.
De fato, se tudo o que temos são categorias e conceitos estabelecidos
de cima pra baixo, com a perspectiva propositiva única a partir do poder
e do Estado, então a única maneira de abordar e interpretar os
acontecimentos atuais, bem como a leitura que fazemos dos sujeitos desta
ação e o olhar que temos sobre nós mesmos, tem exatamente essa
construção que parte do poder e do Estado como referência definidora.
Estamos nós engavetados, e todas as nossas narrativas (discurso,
justificativas, acusações, defesas, comentários) partem deste lugar, que
não é o lugar de todos, e provavelmente não pode servir para falar de
todos.
Portanto é preciso também subverter a linguagem, e todo o seu
corolário (os conceitos, as categorias, as etimologias, as raízes e os
enraizamentos, as metáforas...). É preciso in-verter o caminho da
interpretação e romper a posse, a cooptação, o enquadramento, a
tematização, este terror temido por Levinas (“a tematização não é a paz com o Outro, mas a supressão ou posse do outro"),
que é despejada e assimilada, como armadilhas que capturam presas (e
nós precisamos decidir onde “nos encaixamos”: vândalos, baderneiros,
arruaceiros, pacíficos, exaltados, truculentos, violentos, que mais?).
Nossas igrejas deveriam ser lugares de ressignificação, lugares por
excelência da recepção crítica das categorias de avaliação e leitura da
realidade social (cada vez mais capitalizada). O exemplo de Jesus é o da
ressignificação, da (re)conceitualização — que desconstrói a vigente e
torna outra a ser pensada — que re-(i)nova o entendimento. Ao próximo
(entendido como o parente, judeus entre judeus, fariseus entre
fariseus, um de nós) ele amplia o sentido e inclui o Outro, o
“distante”. A famosa parábola do samaritano mostra que o próximo
pode ser o diferente, não tematizado por sua origem, mas acolhido por
sua necessidade. É provável que Jesus tivesse outra ideia de violência
na cabeça quando foi tão agressivo em seu zelo com o templo. Sábio, ele
já devia saber que a violência é uma palavra tão polissêmica, que só
mesmo a “colonização” do termo por um grupo ou alguns setores, poderia
justificá-la como sendo apenas reconhecida como tal (a agressão e
destruição deliberadas pura e simplesmente) em uma determinada situação,
e nunca em outras.
Então talvez seja preciso “vandalizar as nossas igrejas”, eu diria. É
preciso vandalizar as interpretações costumeiras, hermenêuticas
desconectadas com a realidade, ou, com a ordem existente, para
voltar a Žižek; é preciso vandalizar os espaços vazios dos sermões
apagados, que tornam a desigualdade social invisível aos olhos dos
crentes ouvintes; vandalizar o patrimônio da instituição da “verdade”,
que nega o direito à existência do outro e do seu reconhecimento como
sujeitos a serem contemplados na esfera pública; vandalizar os caminhos
que dizem levar a Deus, sem passar pelo sofrimento e a dor do Outro;
vandalizar o silêncio dos que pregam a paz, demonizando o conflito.
Temos igrejas mornas, em tempos quentes. Compramos a cartilha do Estado
Democrático de Direito, mesmo sabendo que este Estado Democrático de
Direito não garante, por si só, a manutenção da justiça e dos direito
sociais, e é, reconhecidamente, incapaz por si só de contemplar a
dinâmica das demandas da vida cotidiana dessa mesma esfera pública.
Não é o caso de defender a violência e o vandalismo. Ou é, se a única
definição possível não for a que temos, a que nos deram ou a que
herdamos. Eu apenas perguntaria se o “bem aventurados os pacificadores”
permite apenas uma hermenêutica que nos deixe tão mais próximo da apatia
política, da postura acrítica e da “bem comportada” manifestação em
defesa da paz (apenas uma marcha talvez) ou também há espaço para
aqueles que se colocam à disposição das tensões sociais em tempos de
crise, de exacerbação dos que têm a legitimidade da força e da
violência, e de surdez do poder. “Ouça o Espírito, ouça o mundo”, diria o
saudoso John Stott. Eu apenas destrincharia: ouça os pobres, ouça as
periferias, ouça os jovens negros exterminados cotidianamente, ouça o
estado de exceção nas comunidades “pacificadas”, ouça as remoções
ilegais em benefício do mercado e dos poderosos, ouça a indiferença do
poder público com os desabrigados nas tragédias naturais, ouça a
invisibilidade dos que morrem na favela, ouça o clamor por saneamento
básico e dignidade reconhecida. É preciso vandalizar as igrejas, seja lá
o que isso signifique.