domingo, 24 de novembro de 2013

Abolição das brancas verdades, afirmação das afroperspectivas

Texto que publiquei na Novos Diálogos no último dia 20.


Somente de um lugar centrado na experiência própria dos povos africanos é possível, no contexto social do supremacismo branco, perceber a brancura como etnicidade específica, pois a sociedade a apresenta como norma universal, pano de fundo, identidade subjacente e universal que não precisa se articular.
Elisa Larkim Nascimento

Se não sou negro por raça, posso ser negro por opção política.
Leonardo Boff
Os olhares embranquecidos sobre o acontecimento histórico “Abolição da Escravatura” em 1888 tendem a invisibilizar o que de fato acontece no Brasil no processo do “pós-Abolição”. Aboliu-se um sistema legal de opressão, mas não se mexeu radicalmente nem nas estruturas sociais, nem nas formas de pensar sobre elas. Quero me deter no segundo ponto.

Abolir a verdade já muito embranquecida do Brasil não é simplesmente jogar no lixo ou ignorar suas formulações, seus discursos. Estes sempre voltam com força: “Por que não um dia da Consciência Branca?”, “Os próprios africanos venderam seus compatriotas como escravos para o Brasil, a culpa não é do europeu ou do filho de europeu brasileiro!”, “Cotas raciais é racismo inverso!”, “A Escravidão já foi há muito tempo, agora todo mundo já disputa em condições de igualdade!”, “O Brasil é um país mestiço, isso de racismo não tá com nada!”, e por aí vai. Abolir as brancas verdades sobre o Brasil é colocá-las em afroperspectiva.

Todas as falas acima pretendem aparecer como verdades universais, mas são feitas a partir de um lugar inconfessado e inconfessável que é o da brancura. Essas falas negam o racismo, negam a “obra da escravidão”, negam a história do tráfico de escravizados no capitalismo. São falas inteligentes, pensadas, arrojadas, estudadas, ou pelo menos, assim se pretendem. Dentre as muitas teses, pesquisas, estudos sobre o tráfico de escravizados, há pelo menos uma, de fato, que coloca nos próprios Estados africanos da época uma parcela importante de culpa em relação à captura e exportação de pessoas (MOORE, 2012). Mas porque dentre tantas teses, apenas essa aparece como boa, válida, plausível, verdadeira, etc. O que essa escolha de teses – que não aparece como escolha, mas como a própria verdade – quer legitimar? Qual o efeito que essa branca verdade causa?

Outro exemplo, o caso da mestiçagem e da miscigenação. Amplos estudos sobre o assunto, diversas concepções estão em disputa quando o assunto é “Brasil, país mestiço”. Por que escolher a ideia segundo a qual “no Brasil as distinções raciais não são claras o bastante” para fazer valer políticas públicas de ação afirmativa para negros (pretos e pardos) e indígenas? Por que teimar em negar que o racismo continua acontecendo veladamente nas relações interpessoais e nas instituições do país? Por que a insistência em dizer que o problema do Brasil é social e não racial?

Saber-se pertencente a uma sociedade racista é o primeiro passo para combater o racismo em toda e qualquer forma sob a qual ele apareça. Racismo em mim e no outro, nas pessoas e nas instituições. Colocar a história e a atualidade do Brasil em afroperspectiva nos conduz a uma percepção crítica do nosso próprio pertencimento. Não é preciso se identificar (ou ser identificado) diretamente como afrodescendente para assumir esse lugar. Não se trata de reafirmar essências dadas de uma vez por todas. A perspectiva africana, afro-brasileira, ou da Diáspora Africana permite uma crítica de todos os nossos pertencimentos, permite uma crítica daquilo que é hegemônico no nosso modo de pensar, agir, sentir. Colocar as brancas verdades sobre o Brasil em afroperspectiva permite um novo olhar sobre a contribuição de indígenas, negros, imigrantes europeus, colonizadores, latino-americanos etc. para o pensamento, a cultura, as artes, o desenvolvimento nacional etc. Isto porque, dentre todos os lugares, a África sempre teve o mais baixo na escala de valores em termos de cultura, pensamento e desenvolvimento. Esse lugar não é da natureza da África, não é por causa de nenhuma maldição. A África foi (e ainda é) explorada por outros povos, e com o advento do capitalismo, sobretudo pelos povos europeus, foi colocada por estes num não-lugar: sem cultura, sem história, sem religião, sem língua etc. Esse olhar não é dado, é construído.

Não se trata de culpabilizar ninguém, tampouco de desculpar quem quer que seja, trata-se de responsabilizar a nós mesmos, sociedades, Estados, pessoas, organizações, instituições, educadoras/es, militantes, intelectuais, escritoras/es, teólogas/es, pastoras/es etc. pela tarefa de repensar nossos lugares de fala e ação. Nossas práticas reproduzem as relações de poder hegemônicas?

E nossa teologia e nossa “fé cristã”, também partem de uma brancura inconfessada? Hoje, cumpre reconhecer que o evangelicalismo traz consigo um eurocentrismo e uma europeidade subjacentes. Por que o pensamento de “teólogos pop”, como o dos europeus John Stott e C.S. Lewis, aparece como reunidor dos grandes temas universais da espiritualidade e da vida do cristão enquanto as formulações das teologias latino-americanas (por exemplo, Gustavo Gutiérrez), das teologias feministas ou queer (por exemplo, Marcella Althaus-Reid) e das teologias negras (por exemplo, James Cone) são relegadas a segundo plano?

Pastor Marco Davi de Oliveira é um dos que nos convida para outras perspectivas sobre a Bíblia e nossa relação com a fé:
Logo, se faz necessário desconstruirmos os paradigmas que produziram as categorias de pensamentos que nos escravizam. É tempo de olharmos a bíblia pelo lado avesso. Ou seja, olhá-la a partir dos que são oprimidos pela exegese e hermenêutica bíblicas. Olhá-la a partir da perspectiva de que toda a história bíblica é uma história de negros que viviam no entroncamento da África com a Ásia. (OLIVEIRA, 2011)
Hoje, mais do que nunca, é preciso abolir as brancas verdades, inclusive na agenda e nas articulações e agenciamentos feitos nas igrejas. O direito à memória, à história, a construção de uma “consciência negra”, os processos de reconhecimento e valorização da cultura negra ou afro-brasileira são também ações afirmativas, mas não podem mais se dar a partir da ideia de “tolerância e respeito” – que ainda pressupõe um tolerante (superior) e um tolerado (inferior) –; é preciso na verdade se colocar num outro lugar. Esse lugar é provocado pela própria luta do movimento negro, das mulheres negras e de outras atrizes e atores sociais. No campo específico da fé e da teologia, é possível articular hoje uma “teologia afroperspectivista” ou uma “teologia da ação afirmativa”?

Referências:

BOFF, Leonardo. A voz do arco-íris. Brasília: Letraviva, 2000.
MOORE, C. Racismo & Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. 2ª ed. Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
NASCIMENTO, E. L. O olhar afrocentrado: introdução a uma abordagem polêmica. In: NASCIMENTO, E. L. (org.).Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009, p. 181-196.
OLIVEIRA, M. D. Postura negra diante da leitura da Bíblia. Novos Diálogos, 2011.http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=401.

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