segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Ser branco no Brasil

Este texto é de uma professora de Minas Gerais, compartilho-o aqui por motivos óbvios. Espero que apreciem a leitura. A referência bibliográfica segue ao final do texto.


Ser branco no Brasil
por Maria Cristina Soares de Gouvêa

“Grito imperioso de brancura em mim...
Me sinto só branco, só branco
em minha alma crivada de raças”
(Mário de Andrade)

A participação no Programa Ações Afirmativas na UFMG teve para mim um significado refletido, partilhado com os demais colegas, sobre o qual, muitas vezes, me senti impelida a registrar,a pôr em palavras, de modo a melhor compreender o processo. Assim é que a proposta do livro, com o depoimento dos integrantes sobre a experiência de inserção no programa, prontamente me seduziu.

Sendo professora universitária, de origem de classe média, branca, engajar-me nesse projeto significou colocar em permanente questão minha origem sociorracial. Assim, nada melhor do que escrever sobre tal experiência. Mas, cada vez que experimentava pôr em palavras, me vinha uma sensação de inadequação, de estranhamento do próprio texto, de dificuldade em encontrar o tom da escrita, várias vezes desmanchada, interrompida.

Tentando escrever, tinha a sensação de que o tema não me pertencia, de que não tinha direito a falar sobre isso, sendo alguém que nunca viveu a experiência pessoal, quer de exclusão, quer de preconceito, quer de discriminação. Meu lugar social, os valores pelos quais fui formada e as referências identitárias me situaram num universo cultural identificado com os modelos dominantes. E sobre a norma não se reflete, a não ser a partir do desvio. Assim, qual meu direito de falar sobre a experiência de ser negro na universidade brasileira hoje? Qual meu lugar de produção de discurso numa questão que, a princípio, não me pertenceria?

Isso levou-me a pensar sobre a construção social da branquidade no Brasil. É a partir dessa referência identitária que me situo e que me proponho refletir neste texto, buscando resgatar, na minha história pessoal, as marcas sociais da questão da raça no Brasil. Busco também abordar possibilidades de construção de projetos de inserção/permanência dos alunos afro-descendentes nas universidades brasileiras, a partir desse meu lugar de produção discursiva.

Se falar sobre a experiência de ser negro no Brasil é uma questão tão recente, ou marginal, em nossa produção, que ainda provoca desconforto em alguns meios, pensar sobre a branquidade significa estranhar, especialmente no caso da classe média, aquilo que se definiu como padrão. Significa estranhar o modelo cultural dominante e seus ícones, bem como analisar as marcas que o ideário da democracia racial imprimiu nesses grupos sociorraciais.

Tentando resgatar minha vivência, fica claro como o racismo sempre foi tomado como uma categoria estranha ou inadequada para pensar as relações raciais no Brasil, para os grupos brancos. Não somos como os brancos norte-americanos, sul-africanos ou alemães; e a afirmação dessa diferença sempre assumiu um sinal de positividade. Se em nossa história não enforcamos negros, não construímos um aparato legal segregacionista, nem políticas de eliminação de outras raças, não somos racistas, como associamos a esses outros povos.

Ao contrário, nossas referências historicamente celebram a mestiçagem, a herança cultural africana, mesmo que a partir de uma perspectiva folclorizada. O que nos faz brasileiros – o samba, a mulata e o futebol – assume um sentido de celebração da mistura de raças e, especialmente, de valorização cultural africana.

Também nos espaços institucionalizados de transmissão cultural, a representação da positividade da miscigenação racial foi reiteradamente celebrada. Qualquer criança brasileira estudou em livros didáticos em que a imagem do povo brasileiro era apresentada em seus traços físicos como resultado da fusão do português europeu, do indígena autóctone, do negro africano, tendo que decorar que negro + índio = mameluco, índio + branco = cafuzo etc.

Essas imagens oficiais naturalizantes apontavam a convivência interétnica marcada pela soma das diferenças, pela inexistência das tensões, o que, para o branco brasileiro, conferia uma identidade única, positivada em relação a outros países, produzindo uma auto-imagem de cordialidade e tolerância.

No caso das camadas brancas médias, o negro, sujeito concreto, constituía um personagem ausente dos espaços de sociabilidade, habitante das sombras, mudo, permanentemente acompanhado de bandejas, vasilhas, foices, panelas, vassouras, qualquer instrumento de trabalho braçal. Era a partir do lugar do trabalhador desqualificado e ignorante que esse sujeito era situado na cena social urbana brasileira para os grupos brancos de classe média. Ou, na contraface dessa representação excludente, como associado à marginalidade e ao perigo.

Tentando resgatar as imagens de convivência com negros desde a minha infância, na década de 60, relembro mulheres negras, quase invariavelmente usando lenços, ou (quando possuíam dinheiro) alisando o cabelo com produtos baratos, homens negros de cabelos cortados bem curtos, de maneira a esconder as marcas de sua negritude.

Ao mesmo tempo, lembro-me de imitar Elis bradando “Eu quero um homem de cor”, sob inspiração dos movimentos negros norte-americanos que afirmavam: “Black is beautiful”. Difícil compartilhar dessa visão, quando, no Brasil, ser negro constituía à época marca vexatória, padrão estético absolutamente estranho para o ideário de beleza das classes médias brasileiras das décadas de 60 e 70.

A multiplicidade de imagens da presença da cultura negra no Brasil emergia, no período, de maneira multifacetada. Por um lado, uma nascente afirmação da negritude, ligada à denúncia do racismo, identificada com a cultura negra norte-americana, na voz de James Brown, ou abrasileirada em Tony Tornado. Por outro, em expressões da cultura de massa mais próximas de classe média branca brasileira, como os Jackson Five, e, mais especificamente, um Michael Jackson ainda negro. Por fim, em ícones da cultura brasileira ligados à tradição nacional moderna, como Pelé, ou representantes do mundo do samba.

Talvez essa seja a expressão de um racismo à brasileira. O branco brasileiro identifica-se, valoriza e mesmo mimetiza práticas culturais de origem negra, ao mesmo tempo em que se incomoda com o indivíduo negro concreto, socialmente desqualificado. Se Martin Luther King era valorizado em sua luta para que crianças negras e brancas frequentassem os mesmos bancos escolares, não éramos capazes de analisar que, no Brasil, essa cena também inexistia, numa expressão de um racismo envergonhado e ambíguo.

O ideário da democracia racial se entranhou na representação que as camadas médias brancas do País fizeram sobre si mesmas e sobre a nação (ou constituiu a expressão acadêmica dessa representação). Não somos um povo que tem preconceito racial; apenas um povo marcado por uma injustiça social, que historicamente penalizou os negros, fruto da nossa herança escravocrata. Qualquer referência a práticas do racismo à brasileira sempre incomodou profundamente os brancos, sendo compreendidas como manifestações individuais, ou como expressão de tensões singulares.

Hoje, ao me recordar de experiências de construção de uma identidade brasileira, branca, de classe média, penso quando o negro deixou de ser personagem para se tornar sujeito na vivência dessas camadas. É inequívoca tal transformação. E ela explode com maior tensão à medida que tais sujeitos negros, ao denunciarem o histórico de exclusão e discriminação, trazem para a cena política a reivindicação de acesso a um espaço tradicionalmente restrito a camadas médias brancas: a universidade pública, gratuita e de qualidade.

Para mim, a inserção nesse programa tem significado a tensão permanente entre as representações de meu grupo social sobre a universidade como espaço de excelência, da realização do ideário meritocrático, entendido como expressão da sua própria identidade, e o confronto com as experiências e trajetórias dos alunos negros da UFMG, marcadas pela luta constante por um lugar improvável.

Tal tensão era explícita nas entrevistas com os candidatos a bolsas e cursos do Programa Ações Afirmativas. Nesse momento, as estatísticas sobre a desigualdade racial no acesso à educação superior no Brasil tomavam corpo, tinham nome, rosto e voz e se repetiam nos relatos dos candidatos. Suas histórias se sucediam nas entrevistas reiteradas com espantosa regularidade, contadas por sujeitos que naturalizavam um construto social que lhes foi dramático.

Tinha diante de mim o retrato daqueles que conseguiram furar o cerco das estatísticas. Repetia-se a narração de trajetórias em que a universidade se afirmava como superação dos possíveis, ruptura com a história familiar, e demonstrava a dramaticidade do que era vivido por aqueles alunos. Invariavelmente, eram egressos de famílias que nunca chegaram à universidade, vindos de escolas públicas, que, no momento da escolha profissional, optaram por cursos academicamente menos valorizados, mas com maiores chances de aprovação, ou alunos que entraram na universidade, alguns anos depois de terminado o ensino médio e de tentativas frustradas de seleção, estando já inseridos no mundo do trabalho, em ocupações pouco valorizadas e mal remuneradas.

Algumas frases se repetiam nos discursos: “não imaginava que podia entrar na universidade”; “achava que a UFMG não era para mim”; “eu não ia ter chance” etc. Tais frases entravam em confronto com minha própria trajetória, filha e neta de médicos, egressa de escolas privadas que, aos 17 anos, após terminar o ensino médio, me defrontei com a decisão sobre qual carreira queria escolher, entre os cursos oferecidos pela UFMG, meu lugar “natural” de inserção, fruto do meu mérito individual.

Como usar o conceito de mérito, compreendido como atributo individual, inscrito num sujeito e expresso em sua produtividade, quantitativamente aferível e regularmente constituído, na apreensão do desempenho escolar desses sujeitos? Esse alunos negros revelavam uma trajetória de exclusão e de introjeção de uma identidade marcada pela desqualificação de suas competências cognitivas, que nos faz questionar o lugar do conceito de mérito na organização da vida acadêmica.

Dois anos depois de iniciado o programa, revejo aqueles alunos candidatos a bolsas, com os quais me defrontei nas entrevistas. É visível a diferença, expressa tanto num desempenho acadêmico destacado (fato apontado pelos professores de seus institutos) quanto num aumento do capital cultural proporcionado pela convivência com o cotidiano acadêmico, pelo acesso a bens culturais, como livros, filmes, e, mais que tudo, pela construção de uma identidade positivada no exercício da vida acadêmica.

Se, ao entrar na universidade, tais alunos manifestavam uma defasagem em seu desempenho, fruto do não acesso a informações e experiências culturais significativas, academicamente valorizadas, a inserção em programas de correção dessas desigualdades permitiu, em pouco tempo, compensar ou mesmo superar tais defasagens.

Através do programa, constituiu-se um grupo marcado por uma identidade étnica, não restrita aos alunos da UFMG. Nos ciclos de debates promovidos pelo programa, inicialmente, a composição do auditório chamava a atenção de todos que passavam. Tantos negros na plateia, seria um projeto de extensão?

Tal audiência, que se mostrou frequente nos seis debates promovidos ao longo de um ano, era composta, m grande parte, por participantes de movimentos negros organizados, grupos culturais, jovens de periferia. Esse público, normalmente ausente dos espaços da universidade brasileira, demandava pensar e falar sobre sua história e experiência de ser negro no Brasil.

Mesmo sabendo do pequeno alcance dessas experiências, acredito que a reflexão sobre sua realização pode contribuir na construção de referenciais para políticas acadêmicas de inserção/permanência de alunos afro-descendentes nas universidades brasileiras. Nesse sentido, gostaria de trazer algumas contribuições para esse debate:

• Um programa de inserção/permanência de alunos afro-descendentes nas universidades deve se fundar não na promoção do acesso individual, mas na construção de “comunidades de aprendizagem” definidas pela sua identidade étnica. É importante que o aluno compreenda que sua trajetória pessoal constitui expressão das possibilidades de construção de trajetórias socialmente postas a partir de seu pertencimento étnico.

• Tal comunidade de aprendizagem deve ter em vista partir não apenas do sucesso escolar stritu sensu do aluno, mas da reflexão permanente sobre sua identidade, do contato sistemático com a produção acadêmica sobre as relações raciais.

• As experiências desenvolvidas no interior da academia precisam dialogar com os movimentos sociais e culturais constituídos por indivíduos, que podem não ter como projeto a inserção na universidade, mas demandam refletir sobre sua própria identidade.

• É fundamental que os professores afro-descendentes das universidades brasileiras, independentemente de sua área de atuação, assumam o papel de sujeitos dessa discussão. A constituição de referências identitárias socialmente positivadas é imprescindível para que os alunos superem um sentimento presente de autodesqualificação, fruto de sua história pessoal e familiar.

• Mesmo centradas no espaço de ensino superior, as políticas de Ações Afirmativas das universidades precisam dialogar com os outros níveis de ensino, em que a exclusão e, principalmente, a produção de uma identidade negativa dos grupos afro-descendentes operam com maior força. É fundamental que a universidade articule projetos de formação de professores do ensino fundamental e médio que contemplem a discussão das relações raciais na educação.

• Falta ainda maior clareza na definição das políticas de Ações Afirmativas, no que se refere ao acesso/permanência no ensino superior. A adoção pura e simples de um sistema de cotas para afro-descendentes, importando parte de um modelo norte-americano, sem maior aprofundamento quanto aos aspectos políticos e técnicos dessa alternativa, pode retroceder a discussão, ao invés de fazer avançar. Se as relações inter-raciais e as expressões do racismo são historicamente diferentes no contexto brasileiro e norte-americano, a definição de uma política coerente de Ação Afirmativa, fundada em mecanismos variados de correção das desigualdades, deve necessariamente contemplar nossa singularidade.

• A discussão sobre o acesso de grupos historicamente discriminados ao ensino superior não poder ser apreendida como um problema apenas daqueles que o viveram. Fica o perigo de que essa questão fique restrita a guetos, um problema de outros, que não diz respeito a grupos historicamente favorecidos, como os brancos das camadas de maior poder aquisitivo. Ao contrário, pensar um projeto de nação, que seja mais justa e democrática, implica produzir estratégias de correção de nossas alarmantes desigualdades. A elite intelectual brasileira, majoritariamente branca, inserida nas universidades, não pode fugir a essa questão.

Como professores universitários e pesquisadores, especialmente da área de Ciências Humanas e Sociais, cabe a nós não apenas nos posicionar politicamente quanto a essa problemática, mas também produzir e socializar conhecimentos e práticas que contribuam para superar nossa história de exclusão, em nossos espaços de atuação.
Voltando a Mário de Andrade:

“... Mas eu não posso não me sentir negro nem vermelho!
De certo que essas cores também tecem minha roupa arlequinal...
Mas eu não me sinto negro, mas eu não me sinto vermelho,
Me sinto só branco, relumeando caridade e acolhimento,
Purificado na revolta contra os brancos, as pátrias, as guerras,
as posses, as preguiças e ignorâncias!
Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América!
Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada de raças.”
(Trecho de “Improviso do Mal da América”, 1928)

Referência bibliográfica:
GOUVEA, M.C.S. Ser branco no Brasil. In: GOMES, Nilma Lino; MARTINS, Aracy Alves (orgs.). Afirmando direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.