quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Contra a medição da comoção

Ao pesquisar uma série de aspectos ligados ao racismo no Brasil e no mundo, encontrei o tema da "comoção" pelas mortes como algo bastante importante...

Por que nos comovemos mais com a morte de uns do que com a morte de outros? Essa é uma pergunta que critica a medida que se usa geralmente para lamentar/chorar/se compadecer/se solidarizar mais com uns do que com outros. O problema é que a "medida da comoção" que em geral utilizamos não é vista como uma medida. A comoção mobilizada cotidianamente nos discursos que se dispersam pela sociedade via grandes veículos de comunicação (rádio, jornais, tv) e via rede de compartilhamento instantâneo de informações (internet/telefonia móvel) é em geral vista como natural, evidente. Assim, faria todo sentido, por um lado, se comover pelas tragédias envolvendo famosos, e, por outro lado, não se comover com os anônimos. Na verdade, a questão da fama e do anonimato não são os únicos elementos aí...

Me lembrei disso tudo por causa da tragédia ocorrida nesse dia 29/11/2016: a queda do avião com a equipe da Chapecoense que matou mais de 70 pessoas. Junto-me aqui às milhares de pessoas que se manifestaram em luto por essa tragédia e peço a Deus que console as famílias e os amigos dos que se foram.
Nesse dia trágico, a imagem de uma campanha contra o genocídio da juventude negra veio à minha mente: a campanha dizia que todos os dias era como se caísse um avião lotado com 82 jovens negros (o número de tripulantes reais - 77 - e o dos "tripulantes" metafóricos que perdemos todos os dias se aproximam muito, por isso da associação). Daí, pensei novamente: por que não nos comovemos com essas mortes? Uma vez mais repito, não se trata de medir a comoção, mas justamente de questionar a medida da comoção.
A ideia não é moralizar a comoção de ninguém, mas, ao contrário, perguntar: por que medimos a comoção? Por que no dia-a-dia não nos lamentamos pelas mortes dos jovens assassinados no Brasil (77% deles são negros) assim como lamentamos a morte dos jogadores e jornalistas nessa terrível tragédia?

A resposta tem a ver com "visibilidade", tem a ver com o que enquadramos como "vidas", tem a ver com um racismo que estabelece as condições de nossa percepção sobre "quem merece viver" e "quem merece morrer".

Este vídeo da Campanha da Anistia Internacional #JovemNegroVivo é bem interessante na imagem que ele cria em torno da (in)visibilidiade dos jovens mortos. De certa forma, eles já não contam como "vidas", como "vivos" antes mesmo de serem assassinados. Para a sociedade, uma espécie de "morte em vida", "morte social", ou vários outros termos possíveis, tudo efeito de julgamentos de valor baseados em critérios sociais e raciais. Essas vidas são assim "marcadas para morrer", não apenas pela ação direta da polícia, do Estado, etc. mas também a cada vez que alguém legitima e diz por aí "tem que morrer mesmo".





Aproveito também para citar um texto da Judith Butler (Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?), que ajuda a pensar justamente essas questões em torno da comoção, do luto, do racismo, etc.:

"A condição compartilhada de precariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas sim a uma exploração específica de populações-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas “destrutíveis e “não passíveis de luto”. Essas populações são “perdíveis”, ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tenso sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias. Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos “vivos”."