segunda-feira, 21 de abril de 2008

Hidroteologia, contemporânea como a vida (Carlos Queiróz)

A transposição das águas do Rio São Francisco é um dos temas mais polêmicos da agenda brasileira.

A transposição das águas do Rio São Francisco é um dos temas mais polêmicos da agenda brasileira. O projeto, em resumo, destina-se a desviar enormes trechos do Velho Chico para áreas de seca – contribuindo, teoricamente, para a solução do centenário drama nordestino da escassez de água –, e é bandeira prioritária do governo Lula. Os principais argumentos a favor da obra giram em torno da possibilidade de irrigar 300 mil hectares de terras e transformar o sertão em um pólo agrícola, sobretudo de fruticultura, gerando empregos e renda para a região. Doze milhões de pessoas seriam beneficiadas em 268 cidades, de centros urbanos como Campina Grande (PB) e Caruaru (PE) a pequenas vilas encravadas no agreste.Recentemente, o bispo católico Luiz Cappio, com sua greve de fome contra o projeto, chamou a atenção da opinião pública brasileira e internacional para o que considera um equívoco. No entender do religioso, a transposição vai causar mais problemas que soluções. Minha história de vida, juntamente com o trabalho na Visão Mundial, me propiciam uma vocação pastoral marcada pela poeira e pelo sol escaldante do meu querido sertão. Sinto o pó de argila impregnado aos dedos, amolgados pelo atrito das pedras nas sandálias de camponeses pobres. Nas épocas de estiagem, observo o vento morno acariciando as resistentes folhas de carnaúba. A cor cinza da caatinga, formada por gravetos secos, está sempre tatuada na minha memória.
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Ao contrário do que se diz, a natureza presenteou o nosso Semi-árido de paisagens verdes alimentadas por recursos hídricos. Deus concedeu ao Nordeste brasileiro precipitações pluviométricas privilegiadas, um dos solos mais férteis do planeta e uma excelente incidência solar. A combinação destes fatores torna algumas áreas da região um centro atrativo para grandes produtores. No Nordeste, é possível se extrair grandes safras e manter rebanhos bem alimentados. Todavia, ali mesmo, encontro multidões de sofredores. Caso de dona Francisca, que vive a seis quilômetros das margens do São Francisco – mas não pode oferecer um litro de água à cabra, “mãe leiteira” dos seus 11 filhos. Num misto de humor e indignação com a privação ou privatização da água, ela disse que não chorava porque não tinha mais água nos olhos.
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O nosso problema não é apenas de seca, nem será resolvido desviando-se bilhões de metros cúbicos de água. Temos um drama de acumulação de bens e concentração de terras e mananciais nas mãos de poucas pessoas, protegidas por cercas de arame farpado intransponíveis. Acontece que, com menos investimento do que o planejado para a transposição do Velho Chico, pode-se fazer uma reforma agrária mais conseqüente, implementando a agricultura familiar sustentável. Bastaria melhorar pequenos açudes já existentes, montar barragens subterrâneas, continuar construindo cisternas para uso familiar nas pequenas propriedades de Franciscos e Franciscas. Antes de se pensar em mudar o curso de um rio, precisamos de uma mudança de paradigma: priorizar o que fazer em cooperação com o pequeno agricultor, para melhorar sua capacidade de produção. Seus projetos não agridem o meio ambiente e, se tecnicamente bem orientados, são potencialmente mais sustentáveis. Precisamos de uma reforma agrária e agrícola – e, na teologia, devemos entender que o tema em questão é sobre a nossa responsabilidade com tanta água que Deus manda para os nordestinos. Entre a nossa hidroteologia que estuda somente sobre a quantidade de água a ser usada para o batismo – se por imersão ou aspersão –, precisamos optar por uma teologia que equacione o problema da justiça quanto ao uso de água no planeta. Sem amor ao próximo, sem promoção de justiça e, conseqüentemente, sem paz na sociedade, nossa teologia será árida, infértil e não sinalizará a utopia possível do Reino de Deus.
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Que os rios de justiça sejam transportados do coração de mulheres e homens de bem. Parafraseando a linguagem hidroteológica do profeta Amós, pedimos a Deus que “a retidão corra como um rio, a justiça como um ribeiro perene”.
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Carlos Queiróz

4 comentários:

Marcos Vichi disse...

Há alguns anos atrás eu visitei a cidade de Januária - MG à beira do Rio São Francisco. Me espantou ver a seca e o contraste entre as propriedades cujos donos podiam pagar pelos serviços de irrigação, que eram verdes, bonitas, enquanto que os sítios vizinhos, com menos recursos, tinham a cor vermelha da terra seca e as plantas esturricadas pelo calor do sol. Tudo isto tão perto de tanta água.

Um grande abraço,

Marcos

Anônimo disse...

Vamos lá,

Sendo engenheiro,decidi estudar os detalhes técnicos do projeto para formar uma opinião adequada do assunto. Não estive lá pessoalmente, mas alguns amigos meus trabalharam na obra. Vou destacar apenas 2 pontos.

Primeiramente, serão desviados apenas 2% do fluxo de água do rio. Não acho transparente chamar de "enormes" esses 2%. O rio de fato é muito grande e qualquer desvio assim também se assemelha, mas ainda sobram 98% do rio intacto.

O segundo ponto fundamental é termos em mente que o Rio São Francisco está passando por um processo NATURAL de assoreamento. Devido à baixa densidade da mata ciliar o fluxo do rio tez escavado as margens e tornado o rio cada vez mais raso. Se nada for feito aí sim teremos um grande problema.

Essa celeuma criada sobre o desvio do rio mostra como somos vítimas da falta de informações. O problema não está no desvio, mas na futura utilização. Por certo, as políticas regionais atuantes estão aproveitando o desvio do rio, para desviar dinheiro para os próprios bolsos. Nisso temos que atuar efetivamente. A exploração futura será terrível se nada fizermos agora. Entrentando, não é impedindo as obras que o problema vai se resolver.

A mídia, a igreja e o governo aproveitaram como bem quiseram da situação. Cabe a nós aproveitá-la da maneira que Deus deseja.

Grande abraço a todos

Jakler

Anônimo disse...

Entendo o que vc diz e concordo.

De fato, eu não sabia que o Rio São Francisco está sofrendo com assoreamento natural. Confesso-te que para mim é muito difícil entender e aceitar que algo hoje se passe com a natureza em que não haja uma mão da natureza humana, huehe.

Mas acho que o ponto forte da questão é, precisamos urgentemente e de modo bem feito, fiscalizado, estudado e justo realizar e concretizar uma reforma agrária que valorize os indivíduos, as famílias, a terra e a biodiversidade.

Abraço,

apareça mais vezes aqui!

Pedro.

Anônimo disse...

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Jakler