terça-feira, 27 de agosto de 2013

Evangelho das vadias: cadê o Amarildo?

por Nancy Cardoso Pereira

Eu sou daquela religião que espera pelo corpo com o corpo: ressuscitado! A espera se move pela paixão por tudo que é humano... tanta e toda capaz de enfrentar a morte: a cruz.
Aborreço os senhores - horrorizai-vos – que querem travestir a fé de Jesus numa expressão obediente de louvores estéreis: não louvo pra que a “som livre” toque – deslouvado seja! Nem me deixo convencer pelo balbucio do senso comum da bondade: eu quero mais! Bem aventuradas as desobedientes porque elas quebram os espelhos de quem manipula deuses, ofertas & santidade.
Minha religião é aquela entre outras de Jesus que goza com o corpo vivo, morre com o corpo solidário de paixão e ressuscita na espera ativa das mulheres que não admitem que a morte diga a última palavra: nem não!
Não esperamos que nos deixem subir no altar, galgar posições e traficar influência como padres, pastores, profetas, ministros, bispos, arcebispos, cardeais, vigários & teólogos a granel. Esperamos a ressurreição do corpo com a menina dos olhos ardida de desejo, gás de pimenta e sono.
Nossa tradição religiosa vem das mulheres que ressuscitaram Jesus com sua espera audaciosa e persistente: “onde colocaram o corpo de quem eu amo?” - elas perguntavam com o zelo de quem cultiva um orgasmo, arrisca um jardim, desenha um doce, faz o salário chegar no fim do mês, apoia a amiga que vai abortar, organiza uma greve, alimenta a fome com a vontade de comer e lava as roupas ciente de que o que suja o mundo é o medo, a desigualdade e a opressão.
Onde colocaram o corpo de quem eu amo? - diz Madalena. 

Porque levaram embora o corpo do meu Senhor, 
e não sei onde O colocaram. (Evangelho de João 20.13)

Repetiam o gesto antigo de amante e mãe, companheira e irmã que insiste em saber:
 me digam onde colocaram o corpo e eu cuidarei dele... (Evangelho de João 20.15) 


Reivindicam o corpo porque denunciam as muitas mortes e já não aceitam um deus que exige sacrifício, que justifica a injustiça ou atenua o desespero. Elas perguntam pelo corpo do homem morto e se atrevem com perfumes, os seios a mostra e panos, bandeiras e cartazes que desnudam toda pretensão das virtuosas.
Herdamos o gesto des-esperado de Rispa que teve dois filhos mortos pela disputa pelo poder nos tempos do rei Davi... que uma história assim não se esquece! Aquele-no-governo disputava o poder na ponta da espada, na lógica do medo e traição e entregou para mercenários os 2 filhos de Rispa e outros 5 filhos de outra mulher. Os sete enforcados em praça pública, expostos como ação de polícia pacificadora... mas ninguém se atrevia a baixar os corpos, a assumir a morte, a dizer o que aconteceu.
E a mulher antes de todas nós foi lá e fez:
Então Rispa, filha de Aiá, tomou um pano de cilício, e estendeu-lho sobre uma penha, desde o princípio da sega até que a água do céu caiu sobre eles; e não deixou as aves do céu pousar sobre eles de dia, nem os animais do campo de noite. (2 Samuel 21.10) 


E ela perguntava pelos corpos dos filhos, pelos filhos da outra: sem cansar, sem desistir: onde está o responsável? quem tinha o poder de deixar que tirassem a vida do corpo desses meninos: que assuma! Que venha a público! Que se assuma a responsabilidade! E assim ela fez dias e dias, semanas e meses... até que o grande poderoso, violento e dissimulado rei Davi assumisse o crime: não foi ele... mas foi a política dele! Criminoso!
e depois disto deus fez paz com a terra...(2 Samuel 21.14) 


Minha religião é essa, essa minha tradição, as apóstolas da justiça, as herdeiras da coragem que move a esperança. Nós também queremos saber: Onde está o Amarildo da Rocinha? O que fizeram com ele? Quem fez? Quem vai assumir a responsabilidade? E nesse domingo com todas as mães de maio - guerreiras de todas as periferias - e todos os outros dias necessários repetiremos o gesto amoroso de perguntar pelo corpo d@s filh@s do povo e todas as igrejas e comunidades que se comprometem com o evangelho de Jesus vão entoar o único cântico que deus acolhe: aonde está o teu irmão? aonde está tua irmã? (Gênesis 4)

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Nancy Cardoso PereiraPastora metodista, graduada em Teologia e Filosofia, mestra e doutora em Ciências da Religião, com pós-doutorado em História Antiga. É membro do conselho editorial da Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (RIBLA) e agente da Comissão Pastoral da Terra. Vive atualmente na Costa Rica, onde é reitora da Universidade Bíblica Latinoamericana. É mãe de Clarissa e Daniel.




2 comentários:

Leandro Farias disse...

".. Nossa tradição religiosa vem das mulheres que ressuscitaram Jesus com sua espera audaciosa e persistente: “onde colocaram o corpo de quem eu amo?” - elas perguntavam com o zelo de quem cultiva um orgasmo, arrisca um jardim, desenha um doce, faz o salário chegar no fim do mês, apoia a amiga que vai abortar, organiza uma greve .. " Na minha opinião é meio loucura estudar anos de Teologia para expor a mensagem bíblica baseada em suas convicções sociais e culturais. As mulheres estavam a procura de cuidar de JESUS, pois entendiam que Ele é o FILHO DE DEUS, e o Zelo que elas perguntavam e perstistiam era associado a cultura religiosa da época e o amor que as movia que é o mesmo que nos move até hoje, amor pelo nossa ETERNO SALVADOR, influencias ideológicas (apoiar a amiga que vai abortar, organizar uma greve, e por aí vai) ficam por conta dos sentimento progressistas de quem escreveu o texto.

Pedro Grabois disse...

Leandro, compreendo seu ponto. Mas essa disputa de "convicções ideológicas, sociais e culturais" está presente em todos/as, entre os que estudam teologia (como é o caso da Pra. Nancy) e os que não estudam (como o meu caso).

A pergunta que eu faria pra você é: é possível uma teologia, ou uma prática de fé, livre de "influências ideológicas e culturais"? Eu penso que não e acredito que o modo como "formulamos" nossa teologia ou fé tem reflexos mais progressistas ou mais conservadores. Podem falar a partir desses "lugares" de forma mais ou menos consciente e explícita.

No caso desse texto, a Pra. Nancy assume conscientemente um lugar de fala que não é o mesmo de outros líderes religiosos que por convicções sociais, culturais e ideológicas colocam em seus discursos e práticas a mulher, a greve, o prazer, etc. em posições subalternas.