[texto originalmente publicado na página de facebook da revista Novos Diálogos]
“É PM, a Civil,
pronto pra te esculachar, e a força militar, pronto pra te exterminar, UPP
pacificar, pacificar, pra reprimir, pra reprimir, para matar, o pobre
exterminar...”
(“A Maré tá cheia” – Anarkofunk)
O compromisso das
igrejas evangélicas com a promoção da paz é um tema social e político bem
interessante para aqueles/as que se engajam na defesa dos direitos humanos,
pois em todo lugar que há conflitos sociais, lá estará presente uma igreja
evangélica, para o bem e para o mal. Este é também um tema fundamental para os
próprios cristã(o)s. Na Bíblia, não faltam menções à “paz”. Alguns possíveis
exemplos: “Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.” (Mateus 5: 9); “O fruto da justiça será a paz, e a obra da
justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre.” (Isaías 32: 17); “Deixo-vos a
paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe nem
se intimide vosso coração.” (João 14: 27); “E a paz de Deus,
que excede todo o entendimento, guardará o coração e a mente de vocês em
Cristo Jesus.” (Filipenses 4: 7) .
A presença dessa “paz”
aí mencionada não é nada “pacífica”. A paz apresentada na Bíblia já está no
contexto de uma disputa de leituras de mundos possíveis. Sem dúvida, a paz
reivindicada no texto bíblico não pode ser reduzida a uma “paz mundana”, o que
não significa que esteja alheia às condições sociais e políticas da “paz no
campo e a cidade”.
Se quisermos falar de
“juventude e violência” a partir de um engajamento ético e político cristão,
temos vasto respaldo no texto bíblico. Olhando para a realidade brasileira, veremos
números assustadores e entristecedores. Os jovens estão sobrerrepresentados
entre os números de vítimas. Segundo o Mapa da Violência 2016, no período de
1980 a 2014, os jovens de 15 a 29 anos representavam 26% da população
brasileira e 58% de vítimas de Homicídios por Armas de Fogo (HAF). São quase
500 mil jovens vidas brutalmente interrompidas num universo de mais de 830 mil
vítimas no período. Enquanto igreja, um engajamento possível e real é estar ao
lado dessas famílias que perdem seus jovens, das mães, pais, tios, tias,
irmãos, irmãs, avôs, avós que ficam sem seus queridos filhos, sobrinhos,
irmãos, netos...
Tratar a dimensão
psíquica da perda é um caminho necessário, no entanto, não se pode, enquanto
igreja, tratar o fenômeno em questão apenas como “casos isolados”... É preciso
perceber o que coloca a vida de alguns jovens na mira das armas muito mais do
que outros. Neste sentido, o racismo estrutural da sociedade é talvez o
elemento central nesse processo de vitimação. Como já afirmei em duas reflexões
anteriores (“Abolir a segurança” e “Jesus Cristo contra a vida segura”), não
basta agir em termos de “securizar” a vida dos jovens, é preciso desarmar os
mecanismos que hoje estão apontados contra eles. Escolas, ONGs, Governos,
Hospitais, Polícias, Jornais, Igrejas, Tribunais, etc., cada uma dessas
instituições envolve uma série de práticas e políticas que intencionalmente ou
não coloca a vida dos jovens em risco, reforça, reitera os lugares de
“vulnerabilidade”. As armas apontadas contra os jovens precisam parar de matar.
A igreja também é violenta, racista, machista, homofóbica, elitista, etc. e
precisa deixar de sê-lo. A igreja que se alia a uma “paz armada” promove a
violência que diz combater. A legitimação da inclusão/exclusão dos/as jovens
nos espaços da igreja se dá por “argumentos” nem sempre declarados, visíveis ou
explícitos que se pretendem uma leitura autêntica, original, fundamental, pura
de fé, mas que na verdade são marcados por sensibilidades culturais, raciais,
de gênero, de classe, de sexualidade, de faixa etária, etc.
Se
a igreja quer promover a paz, se quer ser de fato ser “pacificadora”, precisa
abandonar suas táticas de guerra, sua aliança com a “paz armada” vendida pelo
Estado e pelas empresas privadas de segurança. Não aliar-se à paz do “Império
Romano” é fundamental como primeiro ponto. A partir daí, construir outros caminhos,
perceber que os/as jovens dentro e fora das igrejas têm encontrado seus
próprios processos de sobrevivência.
Uma crítica-denúncia:
Uma crítica-denúncia:
Não gosto de
pessoalizar as críticas que faço. Em geral, estou mais preocupado em
inventariar as práticas e os conceitos que nos movem. Essas práticas e
conceitos estão presentes em muitos lugares e inclusive dentro de nós.
Identificar num único governo, numa instituição, num único partido etc. o
inimigo de nossa perspectiva pode ser danoso, porque pode nos cegar em relação
às opressões que nós mesmos (re)produzimos. No entanto, venho a público dizer
que, no sábado 5 de novembro de 2016, falei num evento ligado à Convenção
Batista Brasileira (CBB) chamado Igreja Pacificadora. Na parte da tarde, as 4
falas previstas, que antes funcionariam como oficinas, seriam transmitidas ao
vivo pela internet. A minha intervenção, a segunda a ocorrer (depois de uma
fala sobre “violência e subjetividade”), foi sobre “violência e juventude”.
Parece que minha fala não era o que alguns “setores” da instituição em questão
esperavam ouvir, o que gerou um forte incômodo. Algumas pessoas à frente do
evento resolveram então tirar do ar a gravação da transmissão ao vivo já
realizada. Transmitiram normalmente a fala seguinte sobre “violência e infância”
e não transmitiram a quarta e última fala, da professora Lília Mariano, sobre
“violência e gênero”. Fomos avisados posteriormente do ocorrido, o que gerou
bastante revolta na professora Lília, em mim e em nossos pares.
Resisti em fazer essa
crítica pública pelos motivos que coloquei no começo dessa denúncia, mas tudo
isso precisa gerar uma reflexão crítica e autocrítica. Como querer ser “igreja
pacificadora” negando-se a ouvir vozes destoantes? Como querer promover “vida
para a juventude” se os/as jovens são silenciados? Como querer combater a
“violência contra mulher” se o debate de gênero é chamado pra conversa, mas ao
mesmo tempo silenciado? Parece que a minha fala incomodou tanto que a única
resposta possível no momento foi provar que o que dizia tinha mesmo razão de
ser – a igreja promove a violência e está aliada a uma paz armada. O curioso
disso tudo é que nada disso é novo, já fui membro de uma igreja ligada à CBB e
já estive nessa posição difícil de querer promover bons debates, ventilar outras
ideias e ser/sentir-me tolhido pela instituição. Neste sentido, não quero com
essa crítica punir ou responsabilizar indivíduos que hoje se encontram nessas
posições difíceis e carregadas de ambiguidades de agradar a “gregos e
troianos”. Acredito que é preciso antes de tudo rever o que torna possível essa
“difícil situação” de tentar fazer algo diferente “dentro e apesar da
instituição”, mas de se ver preso pelos próprios limites institucionais
impostos. Enfim, faço essa crítica-denúncia com o maior respeito possível às
pessoas que me chamaram para contribuir com o evento, mas com um profundo
lamento no “mais do mesmo” do qual a igreja-instituição em questão se vê
armada. Que a CBB possa também se desarmar e promover vida para jovens,
mulheres, negros/as, LGBTs, reconhecendo onde tem falhado enquanto instituição.