quarta-feira, 24 de abril de 2013

"a luta por direitos humanos é a essência da nova luta de classes hoje"

Gostei bastante do trecho da entrevista com Marcelo Freixo (Deputado Estadual pelo PSOL-RJ) disponibilizado no site da Revista Fórum. A entrevista integral está disponível apenas nas bancas.

A fala de Freixo trata, em determinado momento, diretamente do genocídio da juventude negra e pobre. Vale a pena lê-la, até mesmo para fazer um uso de sua fala numa AGENDA de enfrentamento dessa violência contra os jovens.

Do trecho disponível, destaquei a seguinte passagem, que me soou bastante interessante para disparar uma reflexão em torno dessa disputa em torno do que é o humano hoje (questão para um outro momento):

"A polícia entra na favela e cinco pessoas morrem, isso cria uma grande comoção? Não. Porque, na nossa cabeça, essas pessoas já foram julgadas, julgadas pelo nosso medo. “Polícia entra na USP e mata cinco”. Toda a imprensa vai para lá. Que merda é essa? A dignidade tem endereço, a decência humana tem endereço, é de classe. Por isso, a luta por direitos humanos é a essência da nova luta de classes hoje. Porque não está na relação capital e trabalho, está entre quem é humano e quem não é. Quando um sujeito diz: “Direitos humanos para humanos direitos” é porque ele está dizendo que existe uma categoria que não é humana. Há uma busca de legitimidade do extermínio, seja físico ou moral." 

Por ora fico com o seguinte.
Acredito que a afirmação "a luta por direitos humanos é a essência da nova luta de classes hoje", dentro do contexto apontado por Freixo em outros momentos da entrevista em que ele coloca de forma mais explícita a relação entre cor/raça/etnia e classe, nos permite pensar essas outras dimensões da vida que atravessam a "luta de classes" hoje. 

Por um lado, é preciso pensar recortes de gênero, raça e orientação sexual dentro da questão de classe. Por outro, é preciso pensar dentro das questões de gênero, raça e orientação sexual, as questões de classe.

Sem esses atravessamentos aí sim corremos o risco de cair no que a "esquerda tradicional" chama (ou chamou) de "fragmentação" da luta, de pulverização de "microlutas". Para a "esquerda tradicional", estas lutas específicas não conseguiriam mexer com relações ainda fundamentais ligadas ao funcionamento da sociedade capitalista, ao acúmulo e à circulação do capital. Questões a se pensar... [Aqui, tentei refletir um pouco sobre a especificidade das lutas, mas já desenvolvi essa reflexão um pouco desde então...]


Em suma, acredito nas microlutas e também no seu possível atravessamento com essas questões "macro" do capital. Vejo nesse "agenciamento" a grande potência das novas lutas de hoje!

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Paz armada? (estudo bíblico)


Estudo Bíblico elaborado em 2009 por Pedro Grabois

PAZ ARMADA?
(estudo bíblico participativo)
Há várias formas de se estudar os textos bíblicos. Uma delas é uma aproximação temática. O estudo de hoje foca na questão da paz. Há diversas maneiras de tratá-la: como algo relativo ao interior do indivíduo, como algo construído socialmente, como algo promovido por instituições; alguns vêem a paz como a ausência de guerra, etc. Afinal, o que entendemos por paz? O que os textos bíblicos falam sobre a paz?

O foco de hoje é na paz a partir do Sermão do Monte

Mateus 5: 9: “Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.”
1. Se levarmos em conta todo este trecho do início do Sermão do Monte, que fala das Bem-aventuranças, poderemos perceber como a paz se insere num contexto maior. Qual a importância de pensar a paz a partir de um contexto determinado? Diante desse contexto como fica a idéia de “promoção da paz” relacionada à de ser chamado “filho de Deus”?
2. Sabemos que o livro do profeta Isaías influenciou bastante a escrita dos Evangelhos. A presença do pensamento de Isaías no Sermão do Monte também é bastante notável. Em Isaías 32: 17 lê-se: “O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranqüilidade e na segurança para sempre.” Como você entende essa relação entre paz e justiça? Ela também está presente nas palavras de Jesus, no Sermão do Monte?
3. No Evangelho de João, Jesus diz “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá. Não se perturbe nem se intimide vosso coração.” (João 14: 27) e na Carta de Paulo aos Filipenses este escreve “E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o coração e a mente de vocês em Cristo Jesus.”(Filipenses 4: 7). Aqui a paz parece ser vista de uma outra forma. Como você a vê nestas duas novas passagens? E como esta paz aqui se relaciona com a paz evocada no Sermão do Monte?

MINHA ALMA (O Rappa)
A minha alma tá armada e apontada
Para a cara do sossego!
(Sêgo! Sêgo! Sêgo! Sêgo!)
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!
(Medo! Medo! Medo! Medo!)
As vezes eu falo com a vida,
As vezes é ela quem diz:
"Qual a paz que eu não quero conservar,
Prá tentar ser feliz?"

As grades do condomínio
São prá trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão
Me abrace e me dê um beijo,
Faça um filho comigo!
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo, domingo!

Procurando novas drogas de aluguel
Neste vídeo coagido...
É pela paz que eu não quero seguir admitido

É pela paz que eu não quero seguir
É pela paz que eu não quero seguir
É pela paz que eu não quero seguir admitido

4. A letra da música faz uma crítica a um tipo de paz que é no fundo uma falsa paz. Também se fala muito de paz em contraposição à guerra. Como saber discernir a falsa paz da verdadeira paz, na sociedade de hoje, e se engajar em promover a paz, da qual o Sermão do Monte fala?

domingo, 21 de abril de 2013

A exigência de um pensamento fraco no devir minoritário


Publicado na Novos Diálogos, o texto A exigência de um pensamento fraco no devir minoritário do meu amigo Ronilso Pacheco elabora um interessante diálogo com o meu texto (Por um devir minoritário no devir evangélico do Brasil) também publicado na Novos Diálogos (e antes na Uninômade) e que eu redivulguei aqui no blog essa semana.

Leiam um trecho do provocativo/reflexivo texto do Ronilso:



"Ao descobrirmos que fomos tornados produtos que desconhecemos, somos atraídos por caminhos desconhecidos deste devir minoritário deleuziano, impregnado do evangelho e das boas novas de salvação. São negros, e afirmam sua negritude; são gays, e afirmam sua sexualidade; são mulheres, e afirmam sua feminilidade e autonomia; pode não haver posição fechada sobre o aborto; pode não haver posição fechada sobre a legalização/descriminalização das drogas; não podem ser representados, porque querem falar por si mesmos; e não querem (ao menos não perseguem a ideia de) ser maioria, querem o devir minoritário. Querem a liberdade, a porta escancarada para o diálogo, as fronteiras baixas de espiritualidades outras que não nossas.

Neste terreno informe, afunda-se toda homogeneização, todo tratamento em massa, toda leitura generalizada, e passa a ser subvertido o enquadramento do perfil evangélico numa categoria única, apreendida pelos dados, pelas pesquisas, pelos censos ou pelo trabalho de campo. Há a emergência de uma referência evangélica que se capta a partir da relação. É o encontro. É o lugar do outro na abertura de si, que parece permitir apreender com mais precisão as características de uma “verdade” evangélica, influenciada e referenciada de fato em Jesus."

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O sinal de Nínive, Feliciano e nossa responsabilidade


Dentre as muitas reflexões sobre a "questão Feliciano" e sobre o envolvimento do FALE nisso tudo, aqui está um texto que me tocou diretamente. Ana Elizabete é uma irmã de fé e caminhada muito especial: pude conhecê-la em junho de 2012, quando da realização da Cúpula dos Povos/Rio+20 e nos mantemos sintonizados indiretamente (e também em agendas e demandas da rede) desde então. Percebo na sua reflexão devocional sobre uma situação tão séria (que envolve tantos e tão diversos atores sociais) um "elemento piedoso" sem o qual não posso e nem o FALE pode ir adiante. Leiam vocês mesmos!


O sinal de Nínive, Feliciano e nossa responsabilidade


Por Ana Elizabete Machado*


Como afluíssem as multidões, passou Jesus a dizer: Esta é geração perversa! Pede sinal; mas nenhum sinal lhe será dado, senão o de Jonas. Porque assim como Jonas foi sinal para os ninivitas, o Filho do Homem o será para esta geração.[...]Ninivitas se levantarão, no Juízo, com esta geração e a condenarão; porque se arrependeram com a pregação de Jonas. E eis aqui está quem é maior que Jonas. (Lucas 11. 29, 30 e 32)

Da esquerda para a direita, Damaris Bacon, Ana Elizabete,
Jéssica Ribeiro e Marcel Cintra.
Semana passada pude refletir bastante sobre este texto do Evangelho de Lucas. Sem pretensão de mudar o texto bíblico, mas o que gostaria de enfatizar é “o sinal de Nínive”. Na tradução da Bíblia Judaica Completa o versículo 32 diz: “As pessoas de Ninveh se levantarão no juízo com esta geração e a condenarão; pois elas abandonaram o pecado e voltaram para Deus quando Yonah pregou, e agora está aqui quem é maior que Yonah”. São palavras do Cristo, o Jesus de Nazaré, que diz que a pregação de Jonas alcançou os ninivitas e eles abandonaram o pecado e voltaram para Deus.
Nesta mesma semana também fui à Câmara Federal, junto aos representantes da Rede FALE entregar a petição ao Partido Social Cristão (PSC), que pedia ao partido que repensasse o nome de Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), da Câmara dos Deputados. Foi um tempo bom, em que pude aprender bastante (como sou nova nestes espaços de luta política, observei muito). Ao entregarmos a carta com as mais de 19 mil assinaturas e expor nosso ponto de vista, pedimos ao presidente do partido que nos apresentasse quais eram as qualificações que o PSC via em Marco Feliciano para indicá-lo à presidência da CDHM, já que a escolha do nome foi um processo democrático e interno do partido, como explicado pelo presidente. Nossa pergunta não foi respondida a não ser com os dados de quantidade de eleitores e afirmação de excelente conduta do deputado pastor Marco Feliciano. Num dado momento, a insistência em nossa pergunta (não-respondida) foi tomada como ofensa. Como se sabe, saímos sem resposta e sem o nosso pedido atendido.
Há algo que me faz pensar em associar o sinal de Nínive conosco e a situação que estamos vivendo enquanto evangélicos neste país.
Talvez o sinal que queiramos não vá acontecer, talvez Feliciano continue na CDHM, repito, talvez. E pensar em Nínive e em Jesus me traz esperança porque o sinal de Nínive nos convoca a ouvir a pregação de Jonas e Jesus: “abandonem seus pecados e voltem para Deus!” Acredito que esta mensagem não é só para Marco Feliciano (é também!), mas é para nós (enquanto Rede Fale, indivíduos, membros do Corpo, sinal do Reino e/ou cidadãos brasileiros), que continuamos lutando pelos direitos humanos em todos os nossos variados espaços (inclusive na CDHM, a qual fomos convidados a acompanhar de perto pelo deputado Roberto de Lucena, do PV-SP que participou da reunião, e é um dos membros da Comissão), que esta luta faz parte do nosso abandono do pecado e da volta para Deus. Na compreensão de que esta volta é um processo que deve durar a vida inteira.
A nossa responsabilidade é responder ao sinal de Jonas sendo sinal de Nínive. Através da nossa devoção (voltar para Deus) e da nossa prática (abandonar o pecado) e esta prática que é também continuar lutando para que os oprimidos (órfãos e viúvas contemporâneos) tenham seus direitos garantidos, esta luta vai continuar com o nosso acompanhamento à CDHM e nos nossos espaços de convivência.
“ADONAI prova os corações” (Pv. 17.3b) e clamamos que nossos corações sejam aprovados na luta pela justiça e para que os que “não têm voz” sejam ouvidos. Clamamos que sejamos humanos, como Cristo foi. Clamamos que não demonizemos a nenhum ser humano, de fato, nenhum. Clamamos que sejamos sinal do Reino servindo aqueles que mais precisam. Clamamos por nós, brasileiros, e nossos representantes políticos. Clamamos para não esquecer nossa responsabilidade. Clamamos para não achar que Deus ainda precisa fazer mais um sinal. Clamamos para que o sinal de salvação de Nínive nos alcance e alcance toda a nação.

*Ana Elizabete é cristã, representante da Rede FALE no Conjuve e inicia a articulação da rede em Goiânia. Também participa da ABUB e é professora da rede estadual de educação em Goiás.

FONTE: http://redefale.blogspot.com.br/2013/04/o-sinal-de-ninive-feliciano-e-nossa.html

terça-feira, 16 de abril de 2013

Por um “devir minoritário” no “devir evangélico” do Brasil: um esboço.

Jovens em conflito com a lei em unidade do DEGASE, RJ

Muito tem se falado sobre os evangélicos no Brasil, sobre seu crescimento: em números por todo o território nacional, em presença nos espaços midiáticos e na política representativa. Em diferentes discursos sobre esse segmento da população brasileira, é frequente a vinculação entre o perfil do evangélico ao de uma pessoa reacionária, conservadora, preconceituosa, alienada, e portanto, racista, sexista e homofóbica.

Embora tal perfil exista (e isso não se pode negar), associar, de forma insistente, um ao outro soa como injusta redução, visto que a presença evangélica no Brasil, suas transformações, seu devir enfim, apontam para algo muito mais plural e diverso do que aquilo que se tenta delinear em pretensiosas formulações. Os próprios evangélicos, quando olham para si próprios, tem, pelo menos, duas opções: ou reforçam a fragmentação do mundo evangélico, lançando olhares desconfiados sobre seus pares; ou aproveitam a pluralidade dos grupos para experimentar, nos diferentes espaços que encontram, outras formas de relacionar-se consigo mesmos e com os outros. Neste segundo caso, eles mesmos reconhecem-se como parte de um grupo plural e diverso, impossível de ser representado univocamente. Não há, portanto, motivo para ignorar a heterogeneidade dos evangélicos, uma vez que eles mesmos afirmam diariamente esta impossibilidade de homogeneização.

Eu mesmo, como evangélico “por opção”, falo a partir desses diferentes atravessamentos vividos no âmbito do movimento evangélico. Estou longe de ver o fenômeno “evangélicos no Brasil” como algo fechado e amarrado. Prefiro pensar num “devir evangélico” do Brasil e naquilo que pode se constituir como um devir minoritário neste devir evangélico.

Não falo apenas de, mas por um devir minoritário no devir evangélico do Brasil. Este acontecimento bastante marginal, mas não sem importância, no “interior” do campo evangélico brasileiro, não está apenas diante de meus olhos, mas nele tomo parte cotidianamente. Falo em defesa de um devir minoritário no devir evangélico sem a pretensão de dizer que se trata de um devir minoritário dos evangélicos brasileiros em geral. Embora também não se possa negar que o devir minoritário esteja no próprio gérmen desse devir evangélico, sobretudo pela relação entre as “identidades” evangélico e pobre na história recente do país, seria muita pretensão dizer que haja de fato um movimento de grande alcance que tomaria de assalto todo o meio evangélico brasileiro. Há uma potência no movimento evangélico e nas formas de vida por ele, especificamente, mobilizadas, mas a direção dessa força não está dada. Portanto, cabe dizer que o devir minoritário e o devir evangélico são dois processos que se atravessam ou que podem se atravessar.

Para tornar mais nítido o que entendo por “devir minoritário”, a intervenção de Gilles Deleuze é bastante oportuna. Deleuze traça uma interessante distinção entre maiorias e minorias. Estas não diferem entre si pelo número, não se trata de uma questão quantitativa, isto é, uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. Enquanto a maioria se define por um modelo ao qual seria preciso estar conforme – e o exemplo dado por Deleuze é o do “europeu médio adulto macho habitante das cidades” –, a minoria configurar-se-ia como devir, como processo, não referindo-se a modelo algum. É neste sentido que Deleuze defende a ideia de um “devir minoritário”, que arrastaria por caminhos desconhecidos a todos aqueles que consentissem em segui-lo. Ele aponta que quando a minoria cria modelos é porque quer tornar-se majoritária, não sendo isto propriamente um problema, pois justamente do Estado, do ser reconhecido, do impor seus direitos dependem a sobrevivência e a salvação da minoria. No entanto, a potência da minoria está naquilo que ela cria e esta criação, mesmo passando para um modelo, permanece independente. “O povo é sempre uma minoria criadora, e que permanece tal, mesmo quando conquista uma maioria: as duas coisas podem coexistir porque não são vividas no mesmo plano”, declara Deleuze.

“Evangélicos e católicos somos maioria absoluta no país. [Em] nenhum Estado democrático de direito, minoria vai cercear maioria”, declarava um influente e midiático líder evangélico em ato contra a PLC 122 (que criminaliza a homofobia) em junho de 2011. Este discurso inflamado de ódio e paixão é parte do avesso do que tratamos aqui, é parte de um devir majoritário, que, também não se pode negar, atravessa muitas mentes e corações evangélicas e não-evangélicas no Brasil de hoje e de antigamente. Bastante conhecido de todos, é em geral sobre esse devir majoritário, sobre esse conservadorismo, que se insiste em falar. O discurso majoritário lança mão de um ecumenismo oportunista que une setores evangélicos e católicos para pautar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres — especialmente no que diz respeito ao aborto —, e os direitos ligados à cidadania LGBT — sobretudo no que diz respeito à homofobia e ao casamento civil igualitário. Digo ecumenismo oportunista, justamente porque os movimentos evangélico, ecumênico e de diálogo inter-religioso são, ao contrário, movimentos historicamente marcados por uma dimensão muito mais libertadora e emancipadora no que se refere à conquista de direitos e lutas sociais e políticas daqueles que são perseguidos por sistemas de poder hegemônicos. É no “lastro histórico” desses movimentos que se pode encontrar um devir minoritário no devir evangélico do Brasil. É sobre esse devir minoritário que se deveria falar quando se fala dos movimentos evangélicos no Brasil de hoje. Como criar algo novo e “lutar por uma justiça” para além da (e até mesmo contrária à) Justiça instituída, se só tratamos do oportunismo dos outros?

Há hoje diferentes movimentos dentro das próprias igrejas ou a elas atrelados, que não somente reconhecem aquilo que já não se pode negar — a existência de discriminações insistentemente dirigidas a mulheres, pobres, negros e gays “dentro” e “fora” da vida da fé —, mas que também se empenham em enfrentar toda forma de dominação na sociedade e no interior da própria vida comunitária das igrejas. Não podemos mais negar a capacidade da religião, e aqui especialmente dos evangélicos, como força política criadora de outros modos de vida, de outras formas de subjetivação, que não se sujeitam e não aceitam tacitamente o poder das velhas práticas instituídas concernentes a todos os problemas da vida contemporânea (cultura, sexualidade, raça, gênero, drogas, classe, políticas etc.).

Basta circular um pouco pela região metropolitana do Rio de Janeiro para encontrar pessoas — de diferentes gerações, mas com número expressivo de jovens — e grupos no meio evangélico que questiona o racismo, o classismo, o machismo e a homofobia presentes não apenas nas igrejas, mas nas escolas, nas ruas da cidade, no campo, nas universidades, nos ambientes familiares e no trabalho. De forma organizada em movimentos ou em redes sem ponto central, é cada vez mais frequente encontrarmos isso que chamo de uma “nova subjetivação evangélica”. Essa nova subjetivação aponta para algo que ainda não sabemos bem o que é, mas que passa por um resgate histórico das próprias contribuições da lutas dos evangélicos por justiça, no sentido de quebrar com os sistemas de inclusão/exclusão que hoje se apresentam ainda como inescapáveis evidências. 

Essa nova subjetivação evangélica é atravessada por um devir minoritário. Ela está, assim, em cada ação afirmativa local e global: quando o crente comum expressa sua identidade estratégica dentro de uma série de disputas e reivindicações que atravessam hoje a sociedade. Essa identidade estratégica não faz apenas menção ao ser cristão e ao ser bíblico como essência, mas insere essa dimensão de pertencimento numa agenda propositiva que entrecruza-se com outras identificações: mulher, trabalhadora, estudante e negra, por exemplo. Não se trata de demarcar e fixar a própria identidade, mas perceber o quanto ela mesma é processo (não apenas individual) de subjetivação, processo de ir em direção ao outro, ao outro que há nos outros e ao outro que constitui a nós mesmos.

Esse devir minoritário no devir evangélico do Brasil, sendo um movimento essencialmente dos leigos e não dos pastores (mas sem excluí-los), não passa necessariamente por uma revisão da elaboração teológica ou da fé devocional de cada um. Trata-se antes de um movimento que começa por um questionamento cada vez mais abrangente das velhas práticas de demonizar o outro, e que aponta para novas formas de afirmar o direito que o outro tem de ser outro, e subsequentemente, o direito que nós temos de sermos outros. Esse devir minoritário, essa nova subjetivação evangélica não significa, necessariamente, a abertura de novas igrejas, com novas roupagens ou nova moral.

O que temos diante de nós é antes um movimento marginal, sutil e radical que atravessa as pessoas e instituições. É neste espaço do novo que a fé, a espiritualidade e também a religião têm chance de dizer não ao devir majoritário, que por detrás do discurso da família e dos bons costumes esconde, dentre outras coisas, a morte e o encarceramento de milhares de jovens pretos e pobres, filhos de um projeto religioso e social fundamentalmente excludente. Além do dizer não, tem-se a chance de construir outros modos de vida, que sejam radicalmente afirmativos das vidas e vozes que têm sido abafadas, dentro e fora do meio evangélico.


Publicado originalmente na Uninômade Brasil: http://uninomade.net/tenda/devir-minoritario-no-devir-evangelico-do-brasil/
Publicado também na Novos Diálogos: http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=1085

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Clemir Fernandes: em defesa do diálogo!

Ontem, encontrei-me, assim por acaso, com Clemir Fernandes, grande amigo e importante mestre no Caminho de Luta por Justiça (agora somos também colegas de pós na UERJ).

Ele comentava sobre seu texto na Novos Diálogos,  Opostos que se atraem: Marco Wyllys e Jean Feliciano, lido por milhares e recebido com críticas e elogios por uma centena de pessoas, sem falar nos compartilhamentos.

Eu mesmo quando li o texto, embora discordasse de alguns pontos, encontrei nele interessantes provocações que iam ao encontro de incômodos que também tinha tido na ocasião por ele narrada. Como conheço o Pastor Clemir e sei que a luta dele é por defesa de direitos de todos e todas, que é uma luta por justiça para aqueles/as que têm e tiveram seus direitos negados historicamente, já sabia que aquele texto não se pretendia uma reflexão exaustiva, conclusiva, canônica.

Ontem na conversa com ele, tentei expressar (e é difícil expressar o pensamento com palavras!) o quanto que há problemas na nossa "caminhada política" porque na verdade, as pessoas não sabem ou não tem um jeito de conversar, de se entender, de ler, de interpretar que lide com calma e com paciência diante de certos desafios (éticos, epistemológicos, estéticos, históricos, políticos, etc.).

O "pós-escrito" que o Clemir escreveu (e que está entre os comentários de seu próprio texto) é muito interessante no que diz respeito aos modos de pensar e reproduzo-o aqui abaixo: (reparem que essa questão dos modos de pensar não me interessa por acaso, não é atoa que estou no campo da Filosofia...risos)



1/4/2013 16:58:07Clemir FernandesUm pós-escrito de OPOSTOS QUE DE ATRAEM (Porque o diálogo é necessário!) Caras pessoas, quero aqui agradecer as manifestações ao meu texto recente: Opostos que se atraem. Jamais imaginei que seria lido por tanta gente e que ele receberia tantos comentários. Diante de tantas e diferentes posições (dificilmente seria de outra maneira acerca de um assunto que tem mobilizado paixões e por isso causado fissuras), quero dizer que produzi uma reflexão curta, sem a menor intenção de reduzir um assunto tão complexo, inclusive os atores sociais que o ilustram, aos limites ali dados. Na impossibilidade de responder a todos, faço aqui um pós-escrito geral. Obviamente, não é um texto acadêmico, nem sociológico nem teológico stricto sensu. Posso ter cometidos vários e crassos erros na aparente simplificação mas não faço equivalência plena dos deputados. Procuro mostrar como aquilo que um movimento ou personagem rejeita duramente no outro está, as vezes, arraigado no seu próprio comportamento. E faço isso com base em declarações públicas de ambos os envolvidos. Reconheço que o tema, os personagens destacados e todo esse debate é maior e exige mais aprofundamento e melhores análises. Reconheço também que o deputado aliado a defesa dos direitos humanos tem tido um mandato mais qualificado neste sentido em comparação a seu oponente. Mas procuro identificar semelhanças que podem ser maquiavelicamente legítimas do ponto de vista da politica. Demasiadamente humanos, somos todos! O texto recebeu elogios e curtidas de amigos e pessoas diversas, homossexuais e heterossexuais: tanto evangélicos como sem-religião; umbandistas e católicos; evangélicos conservadores e fundamentalistas, bem como progressistas e ecumênicos; outros cristãos com esses e outros matizes; pessoas de outras confissões religiosas ou sem qualquer religião. Também recebeu críticas, leves e duras, de pessoas dos grupos e tendências anteriormente citados, além de outros. Quero dizer que o que escrevi é apenas mais uma reflexão, entre muitas, sobre esse tema. Não é um texto canônico! Sou parte de um grupo religioso cuja tradição distintiva histórica se baseia na defesa da liberdade individual, na liberdade de consciência e na democracia. Antes de escrever o textículo – como me referi ao mesmo no encaminhamento que fiz ao editor da revista Novos Diálogos – já havia manifestado publicamente, bem antes, minha posição e militância contra a permanência de Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos. E contra sua postura antievangélica nos assuntos em pauta. Como também já manifestei minha defesa ao direito de liberdade individual dos homossexuais e contra a homofobia. Tenho dialogado acerca desse tema e por isso conquistado iras e censura, além de manifestações mais fraternas. De todos os lados possíveis. Não quero massacrar ninguém com esse debate, nem buscar uma confortável posição “murista”, nem ainda adotar um extremo maniqueísta. Minha curta trajetória dá provas de lutas por justiça, além da insustentável leveza do meu jeito de ser. Minha posição é chamar para o diálogo, não para uma conciliação simplória; convidar para um encontro, não para uma síntese que não percebe as contradições. Sem demonizar quem quer que seja, proponho conversar e perceber as percepções em disputa, por mais estapafúrdias que possam parecer. Que pecado tem nisso?! Acolho as críticas de todos/as, mesmo discordando às vezes, claro. Reitero meu objetivo de diálogo, não da retórica extremada de negação do direito ao outro. Sempre em prol de justiça e bem-estar para todos, a partir daqueles que mais sofrem injustiças e discriminação. Tem sido essa minha luta permanente, às vezes removendo pedras para plantar flores, como diz a Cora Coralina. Abraço, em Jesus que morre por todos nós e ressuscita por todos nós, restaurando a esperança de caminharmos em prol de um mundo que não discrimina ninguém mas inclui e acolhe a todos/as. Clemir Fernandes