segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

“Prioridade” para quem? Qual Evangelho?

por Vinoth Ramachandra*

Contaram-me que no recente Congresso de Lausanne na Cidade do Cabo um pregador e autor americano popular afirmou veementemente que a evangelização, entendida como a proclamação verbal do Evangelho, era a “prioridade” da Igreja. Como esta é uma reação típica, instintiva, que a conversa sobre a justiça social ou a “missão integral” provoca em círculos evangélicos conservadores, é importante explorar quem está dizendo este tipo de coisa e se eles na verdade praticam o que estão dizendo.

Se as prioridades de uma pessoa são medidas pelo tempo que ele ou ela gasta no que faz, estou certo que qualquer um que observe a vida cotidiana deste pregador não concluiria que a evangelização fosse sua prioridade. Ele gastou considerável tempo e dinheiro numa longa e cara aquisição de educação. Se ele tem filhos, estou seguro que tem, da mesma maneira, investido significativamente na sua alimentação e em lhes assegurar a melhor educação possível. Não tenho dúvida de que ele come, pelo menos, três refeições ao dia e desfruta, ao menos, seis horas de sono por noite. Ele tem assistência médica e acesso à melhor atenção médica na nação mais rica no mundo. Possuindo um passaporte americano, ele pode voar livremente para (quase) qualquer lugar do mundo, sem precisar esperar em filas do lado de fora de embaixadas para conseguir vistos. Em outras palavras, seu estilo de vida privilegiado não se dá conta de muita coisa. Esse estilo de vida foi possibilitado pelo trabalho e sacrifício de tantos desconhecidos em muitas partes do mundo. E está distante da realidade experimentada pela maioria de seus irmãos que estavam presentes na Cidade do Cabo.

Sempre que pergunto para tais pregadores: “Você não quer que todos no mundo tenham os mesmos benefícios que você desfruta?”. A resposta que recebo ou é “Isto é evangelho social” ou “Esta não é nossa prioridade; não cristãos podem fazer isso”. Se o Evangelho não é social; então, o que é? E se não cristãos podem fazer sacrifícios para assegurar que pessoas como nós tenham uma vida decente, por que somos tão relutantes em fazer o mesmo por elas? Estamos aqui diante de hipocrisia e dupla moral, as mesmas coisas que despertaram a indignação de Jesus!

A linguagem das “prioridades” pertence ao mundo das organizações (que normalmente têm um único foco) e papéis institucionais. Concordo que o pastor deve fazer o trabalho de pastorear e não ficar comprometido com a administração ou buscar um cargo político. Um músico é chamado para tocar boa música — e o chamado do pastor é ajudá-lo a entender o que significa isto e liberá-lo de outras atividades da igreja a fim de fazê-lo. Mas o chamado prioritário de ambos não é definido nem pela ocupação nem pelo dom. É o chamado ao discipulado.

A Igreja, como comunidade de discípulos de Jesus, é chamada na Grande Comissão a obedecer e ensinar outros “a obedecer tudo o que eu tenho ensinado”. É bem integral. Como cargas d’água a Grande Comissão ficou reduzida à pregação? Tentar selecionar dos ensinos de Jesus o que nós obedeceremos ou tentar classificar seus ensinos em uma escala de “prioridades” não é ser seu discípulo. E, então, com que direito convidamos outros ao discipulado? Jesus espera que a Igreja que está proclamando o Evangelho entre as nações está também vivendo este Evangelho diante das nações. Concretamente, ela está comprometida com a construção da paz, faminta e sedenta de justiça, amando seus inimigos, curando os doentes, compartilhando riqueza com os despossuídos, lutando pela unidade em meio às diferenças, e assim por diante.

O mais próximo que Jesus já ficou de nossa linguagem de “prioridades” foi em sua reprimenda aos Fariseus que estavam ignorando os mandamentos mais “importantes” da lei, a saber mostrar justiça e misericórdia e afidelidade (Mateus 23.23). Também quando foi questionado por um doutor na lei sobre qual era o “maior mandamento”. Jesus respondeu: “Amar a Deus” com todo o seu ser, e “amar o próximo” como a si mesmo (Mateus 22.34-40). Curiosamente, nenhuma declaração de fé evangélica que eu li sequer se refere a isto — é como se o ensino daquele que chamamos “Senhor” tenha sido deslocado por fórmulas doutrinárias entregues a nós por nossas tradições denominacionais.

Eu afirmei no post sobre a conferência de Edimburgo 2010 (“Uma Celebração Centenária”) que o clericalismo tinha cegado o testemunho da igreja. Repito esta convicção com relação à Lausanne. Todos os conferencistas das plenárias do Congresso ou eram pastores ou trabalhores “de tempo integral” em organizações paraeclesiásticas. Eles não são representativos da imensa maioria de cristãos ao redor do mundo que servem a Deus como artistas, engenheiros, advogados, fazendeiros, mecânicos, biólogos e um monte de outras ocupações “seculares”. Eles são os reais “missionários” da Igreja, convivendo com não-cristãos diariamente, e cujo trabalho levanta questões éticas que estão na vanguarda da missão. Enquanto suas vozes forem marginalizadas em tais conferências, continuaremos a ter tais discussões sem sentido sobre “prioridades”.

Oxalá pastores “reformados” como aquele que falou em Lausanne nos dê o exemplo, recuperando a doutrina reformada do sacerdócio de todos os santos!

*Dr. Vinoth Ramachandra nasceu no Sri Lanka. É doutor em Engenharia Nuclear pela Universidade de Londres. Foi Secretário Regional da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE) para o Sul da Ásia. É atualmente Secretário para Diálogo e Engajamento Social da CIEE em nível global. Participa há muitos anos do Movimento de Direitos Humanos do Sri Lanka, da Rede Miquéias e d'A Rocha (organização internacional de conservação ambiental). É autor de vários livros e ensaios, entre os quais A Falência dos Deuses (ABU Editora). Os textos postados na revista podem ser encontrados na sua versão original em inglês no blog http://vinothramachandra.wordpress.com/.